Novo filme de Tarantino subverte o faroeste com criatividade, bom humor e crítica social

  • Redação
  • 25/01/2013 07:19
  • Cinemografia

Bem que Quentin Tarantino poderia ter um ritmo de produção mais atuante, como a de Woody Allene Clint Eastwood, por exemplo, que entregam novos filmes a cada um ou dois anos, pois é incrível a falta que faz ao mundo do cinema suas obras particulares e bastante inspiradas, que ao mesmo tempo desconstroem e constroem a mágica da sétima arte. Finalmente realizando seu primeiro faroeste - mesmo que Kill Bill Vol. 2 tenham elementos vários do gênero, não era um filme assumidamente do mesmo -, Tarantino segue em Django Livre a mesma estratégia de contar uma história sem se preocupar com as amarras da veracidade histórica, empregando sua característica verborragia, exageros estéticos, bom humor e plot twists surpreendentes ao narrar a trajetória do escravo negro (Jamie Foxx, de Miami Vice) em busca da esposa (Kerry Washington, de Ray), que encontra-se em domínio do oligarca Calvin Candy (Leonardo DiCaprio, de A Origem).

Dentre todos os títulos da filmografia de Tarantino arriscaria destacar Django Livre como o mais divertido e "leve". Divertido não no sentido do humor ser objeto de maior destaque na obra, longe disso - até por que todos os filmes do cineasta são construídos numa redoma de humor -, mas sim dela carregar uma aura épica e possivelmente heroica - a tão em voga jornada do herói - que acaba tornando-a no mínimo curiosa e, por conseguinte, super divertida. O caráter de leveza se dá em complemento a esta carga heroica do filme, pois se é mais do que óbvia a acidez e o conteúdo crítico por trás da tragédia da escravidão nos séculos XVII e XVII no lado de cá do hemisfério, a abordagem do filme não deixa de ser mais fantasiosa e branda do que títulos outros do diretor. A bem verdade, talvez pelo filme se encontrar taxado como um faroeste, a opção estética de destacar o meio em detrimento dos indivíduos (no caso, aqueles influenciariam diretamente estes) seja acertada, especialmente por ser esta ser uma das características da gênese deste gênero cinematográfico.

Como não poderia deixar de ser, o casting do filme é fantástico. Jamie Foxx, o intérprete de Django, confere fragilidade e altivez a seu personagem durante sua jornada de aprendizado ao lado do doutor King Schultz (Christoph Waltz, de Deus da Carnificina), um exímio caçador de recompensas que tem como diferencial a eloquência e grande poder de fogo em argumentação. Protagonistas da história, estes personagens são peças importantíssimas para que o filme funcione a contento e isto é conseguido sem grandes esforços. A química entre Foxx e Waltz salta aos olhos e, se Foxx mostra-se um excelente "herói", é impossível não notar que o mesmo ficou um tanto desinteressante frente ao excelente personagem de Waltz. É óbvio que isto não implica na perda de foco do filme, mas serve de termômetro para entender por que Waltz obteve tantas indicações a prêmios, enquanto Foxx ficou a ver navios.

Se os mocinhos estão bem representados, o segundo elemento para manter um filme de aventura interessante - os antagonistas - tem que estar ser bem apresentado. Leonardo DiCaprio não deixa por menos e constrói um personagem interessante, um jovem e rico proprietário de terras no (ainda) desumano estado do Mississípi. É certo que seu personagem se mostra um tanto quanto empalidecido durante boa parte do filme, especialmente se nos lembrarmos de sua capacidade como intérprete em filme anteriores, porém antes do cantar do galo uma grande surpresa acontece e podemos perceber toda a desenvoltura e poder de construção de personalidade de DiCaprio, numa cena marcada por um instrumento deveras inusitado: um martelo. Falar mais estragaria qualquer sensação de deslumbre pelo filme, mas é certo que a metamorfização do personagem é brilhante, justificando assim a presença de um ator deste nível ter sido escalado para o papel.

Entretanto, se DiCaprio guardou um carta na mão e a sacou no início do segundo tempo, o veteranoSamuel L. Jackson (Jackie Brown) surge quebrando paradigmas. Apesar de seguir interpretando tipos valentes e de boca suja, dessa vez Jackson está camuflado por uma excelente maquiagem e por alguns anos a mais - seu personagem é um sujeito idoso -, o que acaba por ajudar a sua ótima condução de um vilanesco lacaio de Calvin Candie, talvez a grande surpresa do filme. Se é possível afirmar que Christoph Waltz"roubou" o destaque do personagem de Jamie Foxx, o mesmo se aplica a Jackson, que acaba por deslocar toda a atenção que tínhamos reservada ao sinhô Candy.

A música é sempre uma característica marcante nos filmes de Quentin Tarantino e neste não poderia ser diferente. Preenchendo o filme com temas e canções de outros filmes - o diretor nunca insere trilha sonora composta especificamente para o filme -, com destaque para os temas de Ennio Morricone para o filme Os Abutres têm Fome e a canção 100 Black Coffins, escrita especialmente para o filme por Rick Ross e Jamie Foxx, além do tema do filme Django, de 1966. É realmente surpreendente a sensibilidade e capacidade de Tarantino em catalogar músicas tão distintas e desconexas temporalmente e criar uma linha narrativa crível quando insertas nas imagens do filme.

O contexto político-social do filme é um personagem à parte, tendo a estilização de Tarantino contribuído imensamente para destacar o quão àquele período foi negro - literalmente - para as pessoas de cor. É comum, em filmes de época, o retrato "politicamente correto" dos então escravos, com sua condição se limitando apenas à dependência perante seu senhor e a falta de liberdade. Contudo, como bem destaca (e exagera) Tarantino, as humilhações e os maus tratos passavam e muito do "aceitável" à condição humana, chegando ao cúmulo da bestialização do negro, que era visto como inferior aos animais, sendo mais do que comum jogá-los aos cães, sem o mínimo de remorso. Obviamente que isso não era regra, muito menos o filme expõe apenas o contexto de forma extremista, mas o discurso é válido e a reflexão importante, pois o grande diferencial da escravidão apresentada no filme é que, apesar de horrível, era exercida às luzes, às portas da sociedade. Já hoje, muitas dezenas de anos após o extermínio oficial de tais práticas, outras formas de escravização permanecem bastante vivas - confundindo-se com trabalho, tráfico etc. -, todavia não mais à luz como à época de Django.

Apesar de ter achado Django Livre um espetáculo de filme e uma homenagem mais do que bem feita ao tão apedrejado faroeste spaghetti, senti falta da aplicação de planos abertos e grandes panorâmicas no filme, como os grandes títulos do gênero possuem (apesar da fotografia de Robert Richardson ser primorosa). Também achei que faltou um maior destaque à transformação do escravo Django ao pistoleiro Django - há quem defenda os seis meses de trabalho do personagem junto ao doutor Schultz durante o inverno, porém Django já se mostrava como um exímio pistoleiro antes disso -, o que possivelmente traria um pouco mais de empatia ao personagem. Então, apesar de ter pequenos defeitos e incongruências - ora bolas, trata-se de um filme, não de uma expressão matemática -, Django Livre cumpre em todas as formas o objetivo de uma obra cinematográfica: entreter com qualidade e despertar reflexões, de uma forma ou de outra.