Arapiraquense foi trocada, na infância, por três quilos de farinha

  • Redação
  • 15/09/2012 13:15
  • Cidade

A história de Geruza Souza de Oliveira, de 66 anos, possui um enredo com capítulos de abandono, desprezo, sofrimento e um final feliz. Trocada pela própria mãe, aos oito meses de vida, por três quilos de farinha, Geruza chegou a passar fome em sua órfã infância. O que sua mãe biológica não imaginaria é que 44 anos depois, a criança que ela desprezou se tornaria Comendadora de Arapiraca.


Geruza nasceu no dia 23 de dezembro de 1946, na cidade pernambucana de Rainha Izabel. Filha biológica do agricultor lembrado por ela apenas como Euclides e da dona-de-casa Maria Luiza, Geruza viu seu pai sair de casa quando ela tinha apenas 8 meses de idade.
Desesperada e grávida do quinto filho, no dia seguinte sua mãe Maria Luiza arrumou as malas, pegou a prole e rumou em direção a cidade de Palmeira dos Índios, em Alagoas.

Com três crianças a sua volta, uma no colo [Geruza] e outra no ventre, Maria Luiza foi até a feira livre daquela cidade em busca de algo para se alimentar e alimentar os filhos.
Um vendedor de farinha, ao perceber o olhar desolado daquela mãe que pedia comida nas barracas, se dirigiu até Maria Luiza e fez várias perguntas sobre aquela criança de pele negra e corpo raquítico que estava em seus braços. Ao tomar conhecimento do desespero de Maria Luiza, o vendedor se utilizou do oportunismo e ofereceu três quilos de farinha em troca da criança, prometendo que Geruza seria bem cuidada e jamais passaria fome.

A história de Geruza ganhou novo rumo - não se sabe se pra melhor ou pior -, a partir do momento em que a mãe Maria Luiza disse sim à proposta do vendedor, pegando os três quilos de farinha e entregando Geruza aos braços daquele desconhecido.

Ao chegar em casa com a criança nos braços, o vendedor de farinha foi surpreendido pela fúria de sua esposa, uma mulher racista e intolerante, que não permitiu que o marido entrasse em sua casa com uma criança negra, suja e raquítica nos braços. Após várias negociações, a esposa do vendedor de farinha cedeu, permitindo a entrada de Geruza em sua casa, mas, com algumas restrições, entre elas a de permanecer o tempo todo num canto da sala, em cima de alguns molambos de pano.

Como não tinha outra escolha, o vendedor de farinha preferiu deixar a pequena Geruza naquele cantinho por alguns dias, na certeza de que ali estaria melhor do que se tivesse com a mãe biológica. A presença de Geruza na casa chamou a atenção dos vizinhos. Vencido pela intolerância da esposa, o vendedor de farinha resolveu dar a criança para alguma família que pudesse oferecer algo melhor para ela. Daquele dia em diante a casa do comerciante passou a ser visitada por várias pessoas, curiosas em conhecer a menina.

Foi num desses dias que o casal Manoel Henrique de Souza e Maria Francisca de Oliveira conheceu Geruza, uma criança mal tratada, de olhar triste e desprezada por todos num canto da sala. Imediatamente, o casal pediu a criança ao vendedor de farinha que, desta vez, não pediu nada em troca. Geruza foi levada para uma nova casa, também na cidade de Palmeira dos Índios. Lá começou a ser melhor cuidada, ganhou alguns quilos, foi registrada e aprendeu a pronunciar as primeiras palavras.

A casa era muito simples. O pai adotivo era pintor e a mãe trabalhava como doméstica. Cerca de três meses após a adoção, Euclides, o pai biológico de Geruza, descobriu a troca feita por sua ex-mulher e com quem a sua filha estaria naquele momento.

Ao chegar na residência de Manoel e Maria Francisca, Euclides se apresentou como pai biológico de Geruza e disse que gostaria de rever sua filha. O casal, inseguro sobre a atitude de Euclides, logo avisou que a criança não sairia dali em hipótese alguma. Sem esboçar qualquer reação, Euclides entrou, olhou a menina de longe e pediu para que o casal cuidasse bem dela. Em seguida foi embora e nunca mais foi visto.

O tempo foi passando e Geruza foi crescendo. Em conversa com amigas, a mãe Maria Francisca sempre comentava sobre suas gestações e partos dos demais irmãos. Aquilo intrigava Geruza, que nunca ouvia nada sobre o seu próprio nascimento. Até que um dia a criança questionou a mãe, que não escondeu nada e resolveu contar a verdadeira história para ela.

A revelação foi recebida naturalmente por Geruza. No ano de 1956, quando ela tinha 10 anos de idade, o pai Manoel sofreu um forte derrame e a jovem assumiu a responsabilidade, juntamente com a mãe, de tomarem conta da casa. Por conta da evolução da doença, Seu Manoel ficou impossibilitado de trabalhar, deixando a família com dificuldades financeiras.

Naquele ano Geruza arrumou seu primeiro emprego. Ela foi trabalhar como diarista na casa de várias famílias para ajudar nas despesas de casa, principalmente, na compra de remédios para o pai. Durante o longo período em que acompanhou a doença de Seu Manoel, Geruza respeitava duas exigências feitas pelo pai conservador: não namorar e jamais ir para São Paulo.


O reencontro com a mãe biológica, 22 anos depois

Doze anos se passaram e, em 1968, quando tinha 22 anos de idade, Geruza reencontrou sua mãe biológica. Na época a jovem estava trabalhando como doméstica na casa do ex-deputado Gervásio Raimundo, em Palmeira dos Índios. Coincidentemente, a irmã do seu pai biológico freqüentava a casa e suspeitava que Geruza seria a criança negociada na feira por sua ex-cunhada. Um dia, ao perguntar se a jovem sabia sobre o paradeiro de seus pais biológicos, Geruza afirmou não ter conhecimento, mas citou os nomes dos dois. Ao falar no nome de Euclides, a mulher se emocionou e deu a notícia de que seu pai já havia falecido e que a mãe teria voltado a morar na cidade pernambucana de Rainha Izabel.

Curiosa para rever sua mãe biológica, Geruza combinou com a tia para viajarem até o interior pernambucano durante suas férias. O anúncio da viagem deixou enciumada a mãe adotiva, Maria Francisca, que preferiu não interferir na decisão da filha.

“Quando chegamos na casa de minha mãe, a avistamos no fundo do quintal, cuidando de uma plantação de mandioca. Minha tia gritou por ela, que veio desconfiada, sem tirar os olhos de mim. Após trocar algumas palavras, minha mãe perguntou quem era a moça [eu], mas minha tia falou que era apenas uma amiga. Naquele momento, minha mãe encheu os olhos de lágrimas e me deu um forte abraço, afirmando para a minha tia que ela estaria mentindo e que eu seria a menina que ela trocou por farinha na feira”, disse Geruza, bastante emocionada.

A mãe biológica, por sua vez, pediu para que Geruza a perdoasse e entendesse que a fome foi o motivo que levou a trocá-la por três quilos de farinha. “Não tenho nem nunca tive raiva ou ódio de minha mãe. Sei que ela teve seus motivos, justificáveis ou não, mas ela foi quem me colocou no mundo”, disse.

A MORTE DO PAI E O CASAMENTO
Naquele mesmo ano, Seu Manoel, pai adotivo de Geruza, não resistiu ao sofrimento e morreu, deixando dona Maria Francisca com 3 filhos órfãos. Geruza decidiu então colocar uma toga na feira de Palmeira dos Índios, onde comercializava café e pequenos lanches para comerciantes e clientes. Foi lá onde conheceu José Felino de Oliveira, um jovem, segundo Geruza, bastante atraente simpático. A paixão foi intensa e, com apenas poucos meses de namoro, o casamento ocorreu no dia 10 de agosto de 1969. Na companhia de Felinto, Geruza teve 14 filhos.

Quatro anos após a união, o casal resolveu apostar a vida em Arapiraca. Geruza já tinha 2 filhos e arrumou trabalho em casas de família na cidade, enquanto Felinto se virava trabalhando como carregador de frete na feira. A luta e o esforço do casal renderam a conquista da casa própria no ano seguinte. “Era uma casa simples, humilde, mas era nossa. Isso a tornava linda e o melhor lugar do mundo para se viver com minha família”, disse Geruza.


Em 90, Geruza recebe a maior honraria de Arapiraca

Após o também falecimento da mãe, passaram-se alguns anos quando, em 1985, um médico amigo do casal, tratado por Geruza, simplesmente como Doutor Wellington, indicou Geruza e Felinto para trabalharem na Câmara Municipal de Arapiraca. Ela passou a ser serviçal da Casa Legislativa, enquanto o esposo fazia a vigilância do local. Simples e prestativos, o casal foi ganhando a confiança e o respeito dos vereadores e funcionários.

No ano de 1990, tendo ganhado a simpatia de todos, o então vereador Fernando Rezende, conhecedor da história sofrida de Geruza, sugeriu aos demais colegas a concessão de uma homenagem à funcionária, que foi agraciada com a Comenda Manoel André, maior honraria concedida pelo Legislativo à um cidadão. Na época, a homenagem foi destacada nos principais jornais da região.

“Naquele momento eu pude chegar a conclusão de que tudo o que passei de ruim na vida estaria sendo recompensado. A rejeição, o abandono, tudo, havia caído por terra. Eu, naquele momento, estava no topo, num dos momentos mais felizes da minha vida”, disse Geruza que, dias após, foi promovida a chefe da limpeza da Câmara, onde trabalhou por 18 anos.

ATUALIDADE
Atualmente aposentada, Dona Geruza, aos 66 anos, se considera uma pessoa feliz. Morando em companhia de três filhos e uma neta numa modesta residência localizada na Rua Anita Aristides da Silva, no bairro Jardim de Maria, em Arapiraca, Dona Geruza se tornou evangélica e defende a tese de que Deus escreve certo por linhas tortas.