Parentes de mortos pela Covid-19 relatam a dor e o luto após a doença chegar à família

  • Mara Santos e Maria Luiza Lúcio*
  • 28/03/2021 08:10
  • Especiais
Foto: Arquivo /A Crítica

A pandemia do novo coronavírus já dura um ano e continua avançando pelo mundo. O Brasil registrou, até este sábado (27), 310.550 mil vítimas fatais da Covid-19. Em Alagoas tem 3.467 óbitos já registrados em decorrência da doença.

Em meio a medidas restritivas, protocolos sanitários, isolamento e distanciamento social, as pessoas que morreram devido ao vírus e, por causa dele, muitas vezes não sabem como e onde foram infectadas, são enterradas sem o direito a funerais ou a uma despedida apropriada da família e amigos. Além disso, são obrigadas a enfrentarem a perda, o sofrimento e o luto, sem o abraço e conforto dos seus, gerando um misto de medo, revolta e ainda mais dor.

Ao Cada Minuto, três alagoanos que perderam parentes para a Covid-19 relataram como a doença chegou à família e como estão enfrentando o processo de luto em meio a uma despedida incompleta e atípica.

‘Ela saiu para o exame e não voltou mais para casa’

No primeiro semestre de 2020, os índices de contágio por coronavírus no Brasil já estavam em alta, a estudante Laísa Dowsley perdeu sua avó, com quem morava desde sua infância e tinha uma relação maternal, em decorrência da Covid-19.

A neta afirma que a avó, Maria Luiza Dowsley, 60 anos, trabalhava como psicóloga, mas permaneceu em isolamento desde o início da pandemia. “Ela sempre foi uma pessoa saudável e cuidadosa, mesmo antes disso tudo começar. Sempre foi uma pessoa preocupada, que comprava os alimentos, limpava tudo, sempre foi assim”, explica.

Foto: Arquivo pessoal

“Infelizmente, uma tia minha, que trabalha na área da saúde, acabou contraindo o vírus e minha avó também se contaminou. Primeiro ela começou a ter bastante febre, mas o maior problema foram os pulmões [...] Ela não queria ir pro hospital, não queria ser internada, mas a gente acabou tendo que levar pra fazer um exame, uma tomografia do pulmão, pra ver o quanto estava comprometido, porque a saturação dela estava muito baixa. Ela saiu para o exame e não voltou mais para casa”, relata.

Laísa conta, a partir de sua perspectiva, como foi acompanhar sua avó durante a internação. “Ela ficou internada, pois o pulmão estava bastante comprometido. A princípio, ela ficou no oxigênio, mas logo depois teve que ser entubada, o que foi muito complicado porque não tínhamos contato nenhum. Após o exame, a gente não teve mais contato nenhum com ela”.

“Os médicos, alguns dias, nem davam notícia. Minha avó não tinha plano, foi tudo pelo sistema público. Tinha dia que a gente não sabia se ela estava bem.  [...] Ela não podia nem ficar com celular. Começou a ficar muito agitada por causa da intubação e precisou ser sedada”, completa

Após todo esse processo, começaram a vir notícias boas e sinais de recuperação. Laísa explica que a saturação estava melhorando e os médicos acreditavam que seria possível retirar a intubação, mas logo em seguida tudo começou a mudar e sua avó acabou não resistindo.

“Do nada, não deu certo. A gente já estava criando esperanças. Na verdade, a gente sempre teve, porque ela era nova ainda, muito saudável. Minha avó faleceu, dia 6 de junho. Os rins dela pararam de funcionar, ela teve uma parada cardíaca e não aguentou”, conta a neta.

Maria Luiza atuava na reeducação do presídio psiquiátrico, em Maceió, era uma profissional dedicada, atenta as necessidades do outro e sempre oferecia seu melhor, segundo a neta.

“Ela era o tipo de pessoa que fazia tudo por todo mundo. Comprava lápis de cor, giz de cera, caderno de desenho para os presos. Era o tipo de pessoa que no Natal ou na Páscoa sempre comprava presentes, para o chefe e até para pessoa que ficava olhando o carro no estacionamento.

Ela era literalmente a melhor pessoa do mundo e foi bastante doloroso, está sendo bastante doloroso. É uma coisa que a gente ainda está lidando”, afirma Laísa.

“Acho importante ressaltar que ela sempre foi cuidadosa, nada chegava lá em casa e era guardado antes de lavar. Isso era algo que ela sempre teve, anos antes da pandemia, e ela morreu justamente por esse vírus sabe?!”, lamentou.

Foto: Arquivo pessoal

‘Ele foi levado para o hospital, mas não recebeu nem oxigênio, pois chegou sem vida’

A Família da pedagoga Maria Farias tomou um susto quando sete pessoas foram infectadas com Covid-19, mesmo com a manutenção dos cuidados necessários por todos da casa. O que ninguém imaginava era que a doença levaria o patriarca da família, Manoel Venâncio de Farias, aos 87 anos.

“Meu avô tinha feito exames dois meses antes, o médico falou que ele estava com a imunidade baixa, mas não apresentava nenhum sintoma de covid. No entanto, decidimos redobrar os cuidados e mantê-lo mais em casa, por medo de ele ser infectado”, diz Maria.

Foto: Arquivo pessoal

A neta conta que, devido ao trabalho e atividades dos integrantes da família, o avô deve ter sido contaminado em casa, mas não sabe quem levou a covid para o convívio familiar. “ Trabalhei uma semana infectada e não sabia, tive contato com uma pessoa infectada também. Meu irmão viaja sempre à trabalho, tem contato com muita gente, e meu pai ia sempre à feira, então, ele pode ter sido infectado por algum de nós três em casa mesmo”, relata a jovem.

Maria diz que o avô era o patriarca da família, que criou seis filhos de sangue e três filhos do primeiro casamento da mulher. A neta afirma que o avô era para ela um pai. “Nos deu uma base de como realmente uma família deve ser, ligada sempre a Deus e ser um pelo outro. Ele não era meu avô, e sim meu pai. O que não tive no meu pai, ele supriu tudo”, completa.

Dias antes de morrer, Manoel, que era hipertenso e tinha arritmia cardíaca, preocupou a familiar por apresentar falta de apetite. A família chamou uma enfermeira para avalia-lo e foi informada de que seria melhor interna-lo, pois ele estava fraco e febril. A direção do posto de saúde acionou uma ambulância para levar Manoel para um hospital, mas a mãe de Maria decidiu esperar os filhos para tomar a decisão.

“Ficamos apreensivos. Ele, idoso, não tinha o diagnóstico de ser covid até então, iria ficar internado, sozinho, sem ninguém da família por perto e, devido aos casos registrados no município, nos preocupou que ele pudesse ser contaminado lá. Não imaginávamos que ele já estava com a doença”, relata.

Ainda em casa, Maria conta que o avô não apresentava cansaço, tosse, nem reclamava de dor, ou algo que apontasse que poderia ser coronavírus. “ Ele citava moleza no corpo e uma agonia que sentia na cabeça. Isolamos ele em um quarto, com contato apenas com os de casa”, afirma.

Maria conta que a família decidiu fazer um exame sorológico, após o avô passar a noite do dia 05 de junho de 2020, sem conseguir dormir. Ele reclamava de dor de cabeça, não conseguia levantar da cama sozinho, mas não apresentava tosse ou cansaço.

No dia seguinte, sábado, 6 de junho, a neta diz que uma pessoa da família, que é assistente social, ajudou a decidir pela internação, mas o resultado do exame, que deu positivo, só saiu às 13h40.

Maria relata que sua mãe estranhou o fato de Manoel não chamar por ela, há algum tempo, o que fazia a todo instante. Ao entrar no quarto, a mãe de Maria percebeu que ele não estava respirando direito e chamou os filhos para levá-lo até a Unidade Sintinela, em Arapiraca, cidade onde a família reside.

“Meus dois irmãos pegaram meu avô nos braços e o levaram para o carro. Ele estava desacordado. Às pressas, ele foi levado para o hospital, mas não chegou a receber nem oxigênio, pois chegou sem vida. Ele faleceu praticamente nos braços dos meus irmãos”, relata Maria.

Em meio a dor da perda e com parte da família infectada, Maria conta que estava em isolamento e teve que resolver as questões do sepultamento do avô. A neta diz que além de tudo, não poder velar e sepultar o avô junto à família e como ele merecia só aumentou a tristeza de todos.

“Estávamos cientes que o corpo só poderia ficar no máximo 2 horas na unidade sentinela. Avisei no grupo da família que ele iria ser velado antes das 17h, pois ele faleceu às 15h. Queríamos pelo menos algumas horas para a família se despedir, mas não podia [...] o sepultamento foi acompanhado por 20 pessoas da família, que tiveram que manter o distanciamento social”, expõe Maria.

A jovem lamenta que a família não pode escolher o local onde iria sepultar o avô e que a intenção era de sepultá-lo junto a sua esposa, mas devido a morte ter sido por Covid-19, não foi permitido. “Informaram que tinha que ser onde todos os mortos pela doença estavam sendo enterrados no momento, e que só depois de três anos poderíamos tirar os restos mortais e colocar onde queríamos”, salientou.

Foto: Arquivo pessoal

Segundo Maria, após a morte do seu avô, a falta de empatia, cuidado e consciência da população são coisas que ela não compreende e a leva a questionar se as pessoas pensam na gravidade da situação.

“É algo que me deixa até sem esperança no ser humano. Há um vírus mortal que requer esse isolamento para livrar uns aos outros e, mesmo assim, as pessoas não param para pensar na gravidade. É nítido o quão mortal é esse vírus, que de uma hora para outra modifica a vida de uma família inteira. Digo isso porque perdemos a pessoa mais especial que tínhamos e a falta é imensa”, desabafa.

Maria diz que a lição é prezar pela saúde seus familiares, amigos e dos outros. Ela conta que o restante da família se recuperou, mas que a saudade do avô, a quem define como “incrível” será eterna.

“Ele era um homem incrível, leal, de bom coração, humilde e de muita fé. Em todo momento estava em evangelização. Sempre falava do amor de Deus, ele nos faz falta todos os dias e essa saudade será constante em toda a família”, concluiu Maria.

Duas mortes: ‘O que mais nos deixava aflitos era a falta de notícias’

No último ano, Julliane Santana e sua família tiveram que enfrentar a perda de duas pessoas da família. A tia Maria Socorro de Oliveira Silva, 57 anos, e a avó, Angelita Maria de Oliveira, de 90 anos. Ambas vítimas de Covid-19.

“Minha tia Socorro foi a primeira a apresentar os sintomas da doença. Era como se fosse uma virose, ela sentia muita moleza no corpo, cansaço e calafrios. Como ela não era muito de falar o que sentia, não sabemos ao certo quando começaram os sintomas. O ápice foi quando a irmã da minha tia viu que o cansaço dela estava muito forte. Então, chegou um momento que ela não se aguentava em pé e foi decidido levá-la a UPA [Unidade de Pronto Atendimento]”, relata Julliane.

Segundo Juliane, após o atendimento, veio a expectativa de que logo haveria melhora e Socorro poderia voltar para casa. No entanto, rapidamente, o caso foi se agravando. “Ela foi levada à noite e quando foi de madrugada já tivemos notícias de que ela seria entubada para não ficar forçando o pulmão. Foi então que caiu a ficha de que poderia ser a Covid”, conta a sobrinha.

Julliane diz que no dia seguinte após dar entrada na UPA, Socorro teve que ser transferida para um hospital, pois seu estado de saúde tinha se agravado e exigia internação em uma Unidade de Terapia Intensiva (UTI). “Minha tia foi levada em uma quarta-feira. Na quinta-feira foi transferida para o Hospital Universitário, na sexta-feira ela já estava respirando por respiração mecânica e o estado dela continuava se agravando. No sábado de manhã, ela não resistiu e veio a falecer. Era dia 2 de maio”, completa.

A jovem explica que, desde que sua tia apresentou os sintomas iniciais, a família logo precisou se preocupar com sua avó, Angelita Oliveira, que morava com Socorro.

“Na semana que minha tia estava doente, minha avó já estava bem fraquinha, sem querer comer e sem esboçar reação. Ficamos preocupados, pois havíamos perdido minha tia para Covid e, um dia antes dela ser internada, minha vó estava deitada em uma cama e minha tia em outra” conta Julliane.

Ainda enfrentando a dor de ter perdido Socorro, a família teve que buscar forças para cuidar de Angelita, cujo estado de saúde já inspirava cuidados e preocupação.

“No dia que enterramos minha tia, minha avó foi levada para um ambulatório, tomou soro e o médico suspeitou de infecção urinária. Assim, nos tranquilizamos e a levamos para casa. Passaram-se dois dias quando minha tia notou um certo cansaço na minha avó e chamou o Samu. Ao falarem para a médica que minha tia tinha falecido de Covid, ela já foi levada para UPA como suspeita”, relata a neta.

A neta conta que todo pesadelo vivido com a tia começou outra vez. Segundo Julianne, a falta de notícias era o que mais afligia a família.

“O que mais nos deixava aflitos era a falta de notícias. Tínhamos que apelar por notícias, mas sabíamos do caos que as unidades de saúde se encontravam. Minha vó se internou em uma terça-feira. Quando fizeram exames de sangue e as taxas deram todas alteradas, o estado já estava grave. No dia seguinte, soubemos que precisaria ser transferida para uma UTI com urgência, pois ela já estava com insuficiência renal”, descreve.

A jovem continua: “quando conseguimos uma vaga no Hospital da Mulher, a UTI móvel para transferi-la estava sempre ocupada devido à grande demanda. Ela só foi transferida na sexta-feira, então a espera pelo boletim médico era desesperadora. No sábado, fui até o hospital tentar conseguir notícias e o quadro dela continuava o mesmo, o problema renal persistia. No domingo, dia 10 de maio, ela faleceu”.

Julliane conta que agora, ela e a família, precisa lidar com essas duas perdas irreparáveis e relata com saudade momentos que ficaram em sua memória, vividos ao lado da tia e da avó.

“Minha tia era um amor, uma mãezona para o filho e cuidava da minha vó como ninguém. A profissão dela era se dedicar ao filho e a sua casa. Já minha avó era tudo para mim. Uma pessoa doce, que trazia calma e tranquilidade no olhar. Não morávamos perto, mas todos os dias eu procurava saber como ela estava. Nos finais de semana ia sempre visitá-la. Devido à idade avançada, muitas vezes ela não conhecia as pessoas, mas só em estar ao lado dela, alisando seu cabelinho e fazendo carinho já me deixava bem”, finalizou.