“Eu hoje não sou inteira, eu sou cacos”, diz professora da escola do Realengo-RJ

  • Redação
  • 11/04/2011 06:01
  • Brasil/Mundo

Patrícia Poeta conversou com a professora da primeira sala da escola de Realengo, invadida pelo atirador. A professora Leila D’Angelo contou tudo o que aconteceu desde o instante em que começou a dar sua segunda aula de quinta-feira, às 7h50.

Professora Leila - E a aula começou normal. Fiz a chamada, estávamos todos bem. De repente, batem na minha porta. Eram 8h15. Quando eu abri, ele entrou, mas ele não me pediu licença, nem nada. Ele entrou já com a mala na mão.

Patrícia - Estava nervoso?

Professora Leila - Totalmente tranquilo, eu olhei nos olhos dele, ele tava normal, tranquilo, não tava tremendo, nem nada. Ele entrou com uma sacola de viagem. E eu fiz até cara feia, eu olhei pras crianças porque ele não pediu licença. Ele foi entrando e daqui a pouco ele falou assim: eu vim dar uma palestra. Ai eu virei pra ele e falei: como? Quando eu falei como? Ele já abriu a bolsa. Ele abriu a bolsa e com as duas mãos, ao mesmo tempo, pegou dois revólveres.

Patrícia - Com as duas ao mesmo tempo?

Professora Leila - Com as duas ao mesmo tempo. Eu me lembro perfeitamente disso. Enquanto ele pegava os revólveres, ele falava assim: vim dar uma palestra e já atirou. Ele atirou assim, assim, assim. Eu só me dei conta que não era uma brincadeira depois do terceiro tiro, porque foi tudo tão rápido. Eu me lembro perfeitamente: ele deu um tiro aqui, outro e outro.

Patrícia - Um atrás do outro?

Professora Leila - Um atrás do outro. Pá, pá, assim, um atrás do outro. Eu estava perto da porta. Depois do terceiro tiro, que eu acordei, que parecia que eu estava num filme. Eu olhei pras crianças que estavam numa fileira, eu falei assim: corre que ele vai matar todo mundo. E puxei três. Eu corri, eu falei assim: corre, vai pra rua, grita, chama a polícia, diz que tem um louco na escola. Eu falei isso. E corri pra pedir pra alguém ligar pra policia.

Patrícia - E qual foi a reação das crianças logo depois que ele pegou os revólveres e começou a atirar?

Professora Leila - Muito grito, Patricia, muito grito, muito desespero. Muita criança berrando.

Patrícia - Ele escolhia em quem ele atirava?

Professora Leila - Não, na minha sala, não. Na minha sala foi a esmo. Eu sei que de repente acabaram os tiros. Aí nós paramos, só que ele tava recarregando. Aí, ele recarregou a arma dele e continuou atirando. Aí mais grito, mais grito. Aí, parou de novo, aí a gente achou que tinha terminado, ele continuou carregando. E todo mundo correndo.

Patrícia - E o que ele falou pra essas crianças?

Professora Leila - Ele não falou nada.

Patrícia- Agora deve ser muito duro, a senhora presenciou esses três primeiros disparos...

Professora Leila - Muito difícil, Patricia. Foi horrível, foi horrível. Você não tem noção como foi horrível aquele louco entrando naquela sala matando aquelas crianças.

Leila D'Angelo é professora de português há 25 anos. Leciona na escola Tasso da Silveira há 16. Ela não sabe dizer se a experiência influenciou a decisão que tomou naquele momento.

Patrícia - A senhora teve que pensar muito rápido: corro, fico aqui?

Professora Leila - Se eu ficasse ali eu não ia ajudar em nada. Eu ia acabar talvez ou levando um tiro ou vendo ele matar. Eu não ia poder desarmá-lo. Não ia poder fazer nada. Então eu só pensava isso, eu tenho que salvar essas crianças. E as que estavam perto de mim, eu puxava e eu descia, era só isso que eu conseguia pensar. Foi horrível, foi muito ruim, foi muito triste. Eu adoro o que eu faço. Eu sou professora, porque eu quero. E essas crianças, elas são minhas alunas desde a quinta série, antiga quinta série, atual sexto ano. Eu conheço pelo nome, eu conheço, de muitos, o pai, mãe. Eu tô vendo essas crianças crescendo, passando de crianças pra adolescência. Tem um menino que está no hospital, o Edson (chora). Eu digo assim pra ele. Eu digo pra ele que ele é o preto mais bonito do Brasil, que ele é lindo. E os outros que morreram também foram meus alunos. Milena é inteligentíssima. Ela tinha uma característica muito engraçada, que ela falava assim: ‘não, professora, não quero a minha prova, não. Porque eu sei que eu tirei zero’. Ela só tirava dez. A Ana Carolina era uma espoleta, era, assim, uma graça, mas uma espoleta. A Larissa Martins, por exemplo, era uma das meninas mais alegres que eu já vi na minha vida. Lembro do Igor. Sabe aquela pessoa que sorri com os olhos? O Igor sorri com os olhos.

Patrícia - Até então vocês nunca tinham tido problema de violência?

Professora Leila - Nunca. A minha escola é super tranquila. Os alunos, nós não temos nada de aluno envolvido com nada, com violência, não tem um histórico de violência na minha escola, nada.

Foi nessa escola tranquila que Wellington de Oliveira estudou. Na opinião da professora Leila, se não fosse ex-aluno, jamais teria entrado.

Professora Leila - O Wellington, ele tinha ido uma semana antes pegar o histórico. Naquele dia ele foi na secretaria pegar o histórico e a grade tava fechada. Ele pediu pra subir pra falar com a professora. Todo mundo sabia que ele não ia dar palestra nenhuma, que não tinha palestra aquele dia. A grade foi aberta pra ele, porque ele era ex-aluno. Ele foi identificado como ex-aluno e ele pediu pra rever a professora. Foi só por isso que ele conseguiu.

Patrícia - Já tinha ouvido falar nele?

Professora Leila - Não. Eu não sei se ele foi meu aluno, nem quero mais saber.

Patrícia - O que mais lhe chamou a atenção no comportamento desse rapaz?

Professora Leila - Patricia, o que mais chamou minha atenção era, foi exatamente a disposição dele em matar as crianças. Até hoje eu não entendo por que ele não me matou. Porque, assim, é horrível, mas seria óbvio. Primeiro ele me mataria, até para eu não correr. Então o que mais me chamou a atenção era a disposição de matar crianças.

Patrícia - A senhora se sente preparada pra voltar a essa turma hoje?

Professora Leila - De jeito nenhum, de jeito nenhum. Eu fico imaginando: como é que eu vou entrar naquela sala e olhar pra aquelas crianças? Como é que vai alguém bater naquela porta e você não se assustar? Quando eu vi na internet a foto da minha sala toda suja de sangue. Tinha uma mesa em frente ao quadro deslocada. Eu tinha brigado com eles que aquela mesa tava ali. Falei: ‘gente, mas que absurdo, essa mesa aqui, como vocês são bagunceiros’. E foi naquela mesa que aquele louco botou aquela mala. Aí, quando eu vi aquela mesa suja de sangue, todo meu material sujo de sangue, as mochilas, nossa. Se você me perguntasse hoje se eu volto, eu diria que não, mas eu racionalmente eu tenho que voltar. Eu sei que eu preciso deles e eles precisam de mim. Afinal de contas, eu sou professora. Eu hoje não sou inteira, eu sou cacos. Eu vou juntar esses cacos em que eu me fiz, e eu vou dar força pra elas.

Patrícia - E eu só posso lhe desejar toda a força do mundo numa hora dessas e que a senhora continue preparando essas crianças pra vida.

Professora Leila - Vamos, com certeza, vamos. Vamos e outros virão. Os filhos dessas crianças de hoje virão. E a gente vai estar lá, se Deus quiser, se Deus quiser.